segunda-feira, 12 de julho de 2010

A Besta Ferida

“A confissão pelo mais alto responsável militar de que a guerra da NATO no Afeganistão [general Stanley Mcchystal] é um crime monstruoso contra a população civil não foi considerado tema noticioso.” É com «critérios noticiosos» como este da imprensa de referência mundial que o imperialismo modela a consciência social das populações.

A guerra no Afeganistão continua a fazer numerosas vítimas. As mais numerosas são aquelas de que menos se fala: na população afegã.
Numerosas são também as vítimas entre as forças de ocupação. Mas há pesadas baixas igualmente entre os dirigentes das potências agressoras. Em Fevereiro caiu o Governo holandês, após o primeiro-ministro se recusar a cumprir a promessa eleitoral de retirar as tropas. Há semanas demitiu-se o Presidente alemão, após confessar a verdade em público: a participação da Alemanha visa defender os «interesses» do grande capital alemão. Agora foi a demissão do comandante em chefe das tropas NATO no Afeganistão, o General dos EUA Stanley McChrystal.
A causa imediata da demissão foi um artigo da revista Rolling Stone em que McChrystal e seus colaboradores disparam em todas as direcções, incluindo contra altos representantes do poder político dos EUA.
O artigo traça um quadro de profundas clivagens, revelando a causa de fundo de tanta baixa política: o fracasso completo da guerra, ao fim de nove anos de ocupação de um dos países mais pobres do planeta pelas mais ricas e poderosas potências imperialistas dos nossos dias. Dá que pensar. Segundo a Rolling Stone, «o staff do General é uma colecção escolhida a dedo de assassinos, espiões, génios, patriotas, manipuladores políticos e maníacos completos».
Quem somos nós para desmentir? O articulista afirma que o General «ficou manchado por um escândalo de abuso de presos e tortura em Camp Nama, no Iraque. […] foi extremamente bem sucedido como chefe da Joint Special Operations Command, as forças de elite que executam as mais sombrias operações do Governo. Durante a escalada no Iraque, a sua equipa matou e capturou milhares de insurgentes […] “a JSOC era uma máquina de morte” afirma o Major General Mayville, seu chefe de operações».
Mas na sua parte final, o artigo faz-se porta-voz de queixas de que o General McChrystal não deixava matar o suficiente no Afeganistão, acrescentando: «quando se trata do Afeganistão, a História não está do lado de McChrystal. O único invasor estrangeiro que teve algum êxito aqui foi Gengis Khan – e ele não estava limitado por coisas como os direitos humanos, o desenvolvimento económico e a fiscalização da imprensa».
Direitos humanos? Desenvolvimento económico? Fiscalização da imprensa? De qual Afeganistão estão a falar?
No artigo refere-se que «McChrystal admitiu recentemente que “matámos um número impressionante de pessoas”» mas corta-se a parte final da frase do General: «mas tanto quanto sei, nenhuma delas se veio a provar uma ameaça» (New York Times, 26.3.10).
A confissão pelo mais alto responsável militar de que a guerra da NATO no Afeganistão é um crime monstruoso contra a população civil não foi considerado tema noticioso.
Sendo a invasão do Afeganistão obra de Bush, é Obama que decide fazer dela a «sua guerra», com o envio de mais 50 mil soldados e a nomeação de McChrystal. Prometeram-se êxitos, incluindo «a maior ofensiva terrestre desde a guerra do Vietname». A comparação é adequada, dado o fracasso evidente. Mas seria um erro subestimar os perigos. O novo comandante das forças NATO, o General Petraeus, é autor duma «directiva secreta […] que autoriza o envio de tropas de Operações Especiais dos EUA para nações amigas e hostis […] e que pode abrir caminho a possíveis ataques militares contra o Irão […]. O General Petraeus inclui-se entre os muitos altos comandantes que defendem […] que as tropas têm de agir para além do Iraque e Afeganistão» (NYT, 24.5.10).
A capa da revista que afundou McChrystal é ironicamente simbólica. Nela surge a cantora Lady Gaga em trajes mais que menores, empunhando duas metralhadoras. De facto, o imperialismo está gágá e o Rei vai quase nu. Mas não se deve subestimar o perigo de que lance mão do seu arsenal militar para – numa deriva criminosamente aventureirista – tentar sair da sua enorme crise pela via da violência e da guerra.
Jorge Cadima

Artigo original no odiario.info

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Quem é Rui Pedro Soares, o administrador da PT


A face oculta das escutas

Quem é Rui Pedro Soares, o administrador da PT que surge nas gravações como o alegado pivô do negócio TVI?

Paulo Pena e Tiago Fernandes (texto)
Publicado na Visão
Quinta-feira, 11 de Fev de 2010

Os dois momentos mais altos da sua, curta, carreira - tem 36 anos - tinham, até agora, sido estampados em T-shirts. E são a melhor ilustração da passagem dos anos por este jovem do Porto que integra o restrito conselho de administração onde se sentam os 25 executivos de topo de uma das maiores empresas portuguesas, a Portugal Telecom (PT). Foi de Rui Pedro Soares a ideia de estampar em centenas de T-shirts a imagem de Che Guevara e o poema que Manuel Alegre dedicou ao revolucionário argentino ("O foco guerrilheiro existe sempre / Em cada um de nós existe um foco / Uma guerrilha possível, uma insubmissão"), que a Juventude Socialista (JS) de Lisboa, então liderada por este jovem estudante de Gestão de Marketing, exibiu nas acções de campanha para as eleições legislativas de 2002. O PS perdeu, mas Rui Pedro, que já propusera a mudança da cor das bandeiras da jota de amarelo para vermelho, e que se candidatara à liderança da organização com a moção "Nós vamos pela esquerda", fez a sua declaração política.

Sete anos mais tarde, Rui continua a imprimir letras em T-shirts. Mas noutro campeonato. É ele quem negoceia os patrocínios da PT aos três grandes do futebol, Benfica, Sporting e Porto, o seu clube do coração que já lhe retribuiu o gosto com uma insígnia: é Dragão de Ouro e presença assídua no camarote presidencial do estádio portista. Nada que o tenha impedido de financiar os 11 milhões de euros gastos pelo Sporting em jogadores, no mercado de Inverno.

A sua biografia, no site da PT, é clara: "Rui Pedro Soares integra a Portugal Telecom em 2001, empresa onde tem vindo a consolidar a sua carreira profissional." A "consolidação" levou-o ao Olimpo da empresa, por indicação do accionista Estado, em 2006, onde aufere um montante anual de um milhão e duzentos mil euros, segundo contas do Diário Económico, a partir da tabela de remunerações fornecida pelas empresas do PSI-20, em 2009. Ou seja, Rui Pedro ganhará, por mês, 16 vezes mais que José Sócrates.

Como chegou ali? Essa era uma das perguntas que gostaríamos de lhe colocar, mas o administrador da PT não aceitou falar com a VISÃO. O deputado Sérgio Sousa Pinto, que o conhece há 16 anos, não lhe poupa elogios: "Tenho a maior consideração pessoal e profissional por ele. Acho muito injusto a imprensa estar a retratá-lo como um boy. Ele é alguém com muito valor, inteligência e muito capaz. Claro que a nomeação dele como administrador é fruto de um voto de confiança de quem o nomeou."


SALTO Á VARA

A sua ascensão acaba por se assemelhar à de Armando Vara, outro socialista de quem se fala no processo Face Oculta, e que passou de administrativo a administrador da Caixa-Geral de Depósitos e, mais tarde, do BCP. Ambos estavam na empresa e, graças aos contactos partidários, "consolidaram" a sua posição.

Quando, em 2004, os jornalistas falaram com ele, durante a campanha interna para a liderança do partido (que opôs Sócrates a Alegre e a João Soares), Rui Pedro foi descrito como um "informático". Era ele que geria a página online do candidato que acabaria por vencer. Mas perderia, nessa altura, um dos seus mais importantes aliados internos: João Soares, que não terá perdoado a "traição" do seu ex-discípulo - levara-o às listas para a Câmara de Lisboa (2001) e a um lugar de vereador sem pelouro, após a (imprevista) vitória de Santana Lopes. Aí, Rui Pedro tratou de fazer política concelhia, contra os rivais internos, Miguel Coelho e, sobretudo, Jorge Coelho, que ainda mandava no "aparelho".

Era a consequência de uma série de "guerras" na JS, após a saída do seu líder, Sérgio Sousa Pinto, em 2000. O secretariado cessante da Jota (que integrava, entre outros, os actuais secretários de Estado Marcos Perestrello, Rocha Andrade e o porta-voz do PS, João Tiago Silveira) passou, de armas e bagagens, para a candidatura de Ana Catarina Mendes. Rui Pedro, quase sem apoios, candidatou-se.

Ficou em último e, surpreendentemente, acabou por apoiar a candidata Jamila Madeira, na segunda volta. A JS quase que se partia. E Rui Pedro ficou "proscrito".
Além do trabalho político na concelhia de Lisboa, teve uma curta passagem pela direcção de marketing do banco Cetelem, uma sucursal de crédito ao consumo (com juros altos) do Banque Nationale de Paris/Paribas. Depois foi para a PT, tendo começado na antiga TV Cabo.

"Provavelmente, até fui eu quem o apresentou ao engenheiro Sócrates, assim como também apresentei [a Sócrates] o Marcos Perestrello e os outros que vieram a fazer a campanha dele para a liderança do PS, em 2004", recorda Sérgio Sousa Pinto. Na altura, José Sócrates não tinha apoios entre os jovens do partido. E o velho secretariado da JS reúne-se em seu redor.

Meses antes, Rui Pedro colaborara com Luís Nazaré, no Grupo de Estudos do partido, durante a liderança de Ferro Rodrigues. Mais uma vez, tratou-se de um apoio técnico. "Prestou colaboração na área das telecomunicações, visto que ele era quadro da TV Cabo. Lembro-me, por exemplo, do enorme contributo que deu para a criação do site do Gabinete e em relação às múltiplas plataformas em que nos poderíamos alojar. Esteve connosco apenas alguns meses. Telefonou-me um dia a dizer que havia sido promovido na empresa e que deixaria de ter disponibilidade para continuar a colaborar. Achei perfeitamente normal que ele tenha ido à sua vida. Fiquei com a ideia de um rapaz de vinte e tal anos que queria evoluir profissionalmente naquela área e se calhar também politicamente", recorda Nazaré.


A LIGAÇÃO A PENEDOS

De facto, em dois anos, Rui Pedro foi promovido inúmeras vezes. De "consultor do conselho de administração" passou a "administrador executivo da PT Compras", em 2005, depois, a "presidente do conselho de administração da PT Imobiliária", em 2006 e, por fim, a membro executivo do conselho de administração da empresa. É ele que vai buscar o seu velho amigo Paulo Penedos, da JS, para assessor jurídico do seu gabinete. E é através das escutas montadas a Penedos que é "apanhado" na suspeita de "atentado ao Estado de Direito" que sobre si recai, depois de divulgados, pelo semanário Sol, os despachos do magistrado do Ministério Público de Aveiro e do juiz de instrução criminal do baixo Vouga, mandados arquivar pelo procurador-geral da República, por ausência de indícios criminais.

Sempre foi um político "de bastidores". Reservado, pouco dado à oratória, discreto. O oposto do seu amigo Penedos, visto como um "fanfarrão", que se gaba de conhecer meio mundo e se exibiu, numa campanha eleitoral autárquica, ao volante de um Ferrari vermelho.

Nas legislativas de 2005, conta um membro do staff de Sócrates, mantinham conversas regulares ao telemóvel: "O Paulo Penedos, enquanto membro da máquina de campanha, fartava-se de ligar ao Rui Pedro para ele, lá na PT, lhe arranjar telemóveis para o Sócrates - partia-se pelo menos um por semana", devido às "fúrias" do candidato, acrescenta.


O Plano inclinado

Maio de 2009. A PJ tem os telemóveis dos socialistas Armando Vara e Paulo Penedos sob escuta, por causa das suas supostas ligações ao sucateiro Manuel Godinho, no âmbito do processo Face Oculta. Mas das conversas entre o administrador do BCP e o consultor da PT ressalta para os investigadores a existência de um suposto esquema para controlar a TVI e tirar do ecrã Manuela Moura Guedes e as notícias sobre o Freeport. A 26 desse mês, dá-se o primeiro contacto entre Penedos e o seu correligionário Rui Pedro Soares, administrador da PT e que, alegadamente, se torna o pivô da compra da estação televisiva pela Portugal Telecom. As escutas trazidas à estampa pelo jornal Sol referem diversas idas de Rui Pedro a Madrid a fim de acertar com a direcção da Prisa - dona da TVI - os detalhes do negócio. Que não veria a luz do dia, após a polémica instalada pela divulgação da operação na imprensa, tendo o primeiro-ministro assegurado que, se a PT insistisse na compra, o Estado usaria a sua golden share para vetar o negócio. Sócrates garantiu sempre nunca ter sabido da intenção da PT de adquirir a TVI, mas, nas escutas, há referência a um jantar entre Rui Pedro Soares e o chefe de Governo e é insinuado em outras conversas o conhecimento que este último teria de todo o alegado esquema para controlar a TVI.

Foi o que achou quer o procurador de Aveiro quer o juiz de instrução titular do caso Face Oculta. Só que enquanto o magistrado judicial afirmava existirem indícios muito fortes da existência de um plano, no qual Sócrates estaria envolvido, visando o controlo da estação, o procurador-geral da República, a quem foram remetidas as certidões para validação, desvalorizou esses elementos, tendo Pinto Monteiro decidido não avançar com um inquérito, alegando a falta de "indícios probatórios" da prática do crime de atentado ao Estado de Direito.

http://aeiou.visao.pt/quem-e-o-homem-que-quer-impedir-a-publicacao-do-jornal-sol=f547707

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

"Um suicídio no trabalho é uma mensagem brutal"


Entrevista a Christophe de Dejours

01.02.2010 - 10:14 Por Ana Gerschenfeld

Nos últimos anos, três ferramentas de gestão estiveram na base de uma transformação radical da maneira como trabalhamos: a avaliação individual do desempenho, a exigência de “qualidade total” e o outsourcing. O fenómeno gerou doenças mentais ligadas ao trabalho. Christophe Dejours, especialista na matéria, desmonta a espiral de solidão e de desespero que pode levar ao suicídio.

Psiquiatra, psicanalista e professor no Conservatoire National des Arts et Métiers, em Paris, Christophe Dejours dirige ali o Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Acção – uma das raras equipas no mundo que estuda a relação entre trabalho e doença mental. Esteve há dias em Lisboa, onde, de gravata amarela, cabeleira “à Beethoven” e olhos risonhos a espreitar por detrás de pequenos óculos de massa redondos, falou do sofrimento no trabalho. Não apenas do sofrimento enquanto gerador de patologias mentais ou de esgotamentos, mas sobretudo enquanto base para a realização pessoal. Não há “trabalho vivo” sem sofrimento, sem afecto, sem envolvimento pessoal, explicou. É o sofrimento que mobiliza a inteligência e guia a intuição no trabalho, que permite chegar à solução que se procura.


Claro que no outro extremo da escala, nas condições de injustiça ou de assédio que hoje em dia se vivem por vezes nas empresas, há um tipo de sofrimento no trabalho que conduz ao isolamento, ao desespero, à depressão. No seu último livro, publicado há uns meses em França e intitulado Suicide et Travail: Que Faire? , Dejours aborda especificamente a questão do suicídio no trabalho, que se tornou muito mediática com a vaga de suicídios que se verificou recentemente na France Télécom.


Depois da conferência, o médico e cientista falou com o P2 sobre as causas laborais desses gestos extremos, trágicos e irreversíveis. Mais geralmente, explicou-nos como a destruição pelos gestores dos elos sociais no trabalho nos fragiliza a todos perante a doença mental.

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  • "Um suicídio no trabalho é uma mensagem brutal"


    Entrevista a Christophe de Dejours

    01.02.2010 - 10:14 Por Ana Gerschenfeld

    Nos últimos anos, três ferramentas de gestão estiveram na base de uma transformação radical da maneira como trabalhamos: a avaliação individual do desempenho, a exigência de “qualidade total” e o outsourcing. O fenómeno gerou doenças mentais ligadas ao trabalho. Christophe Dejours, especialista na matéria, desmonta a espiral de solidão e de desespero que pode levar ao suicídio.

    Psiquiatra, psicanalista e professor no Conservatoire National des Arts et Métiers, em Paris, Christophe Dejours dirige ali o Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Acção – uma das raras equipas no mundo que estuda a relação entre trabalho e doença mental. Esteve há dias em Lisboa, onde, de gravata amarela, cabeleira “à Beethoven” e olhos risonhos a espreitar por detrás de pequenos óculos de massa redondos, falou do sofrimento no trabalho. Não apenas do sofrimento enquanto gerador de patologias mentais ou de esgotamentos, mas sobretudo enquanto base para a realização pessoal. Não há “trabalho vivo” sem sofrimento, sem afecto, sem envolvimento pessoal, explicou. É o sofrimento que mobiliza a inteligência e guia a intuição no trabalho, que permite chegar à solução que se procura.


    Claro que no outro extremo da escala, nas condições de injustiça ou de assédio que hoje em dia se vivem por vezes nas empresas, há um tipo de sofrimento no trabalho que conduz ao isolamento, ao desespero, à depressão. No seu último livro, publicado há uns meses em França e intitulado Suicide et Travail: Que Faire? , Dejours aborda especificamente a questão do suicídio no trabalho, que se tornou muito mediática com a vaga de suicídios que se verificou recentemente na France Télécom.


    Depois da conferência, o médico e cientista falou com o P2 sobre as causas laborais desses gestos extremos, trágicos e irreversíveis. Mais geralmente, explicou-nos como a destruição pelos gestores dos elos sociais no trabalho nos fragiliza a todos perante a doença mental.

    O suicídio ligado ao trabalho é um fenómeno novo?


    O que é muito novo é a emergência de suicídios e de tentativas de suicídio no próprio local de trabalho. Apareceu em França há apenas 12, 13 anos. E não só em França – as primeiras investigações foram feitas na Bélgica, nas linhas de montagem de automóveis alemães. É um fenómeno que atinge todos os países ocidentais. O facto de as pessoas irem suicidar-se no local de trabalho tem obviamente um significado. É uma mensagem extremamente brutal, a pior do que se possa imaginar – mas não é uma chantagem, porque essas pessoas não ganham nada com o seu suicídio. É dirigida à comunidade de trabalho, aos colegas, ao chefe, aos subalternos, à empresa. Toda a questão reside em descodificar essa mensagem.


    Afecta certas categorias de trabalhadores mais do que outras?

    Na minha experiência, há suicídios em todas as categorias – nas linhas de montagem, entre os quadros superiores das telecomunicações, entre os bancários, nos trabalhadores dos serviços, nas actividades industriais, na agricultura.


    No passado, não havia suicídios ligados ao trabalho na indústria. Eram os agricultores que se suicidavam por causa do trabalho – os assalariados agrícolas e os pequenos proprietários cuja actividade tinha sido destruída pela concorrência das grandes explorações. Ainda há suicídios no mundo agrícola.


    O que é que mudou nas empresas?

    A organização do trabalho. Para nós, clínicos, o que mudou foram principalmente três coisas: a introdução de novos métodos de avaliação do trabalho, em particular a avaliação individual do desempenho; a introdução de técnicas ligadas à chamada “qualidade total”; e o outsourcing, que tornou o trabalho mais precário.


    A avaliação individual é uma técnica extremamente poderosa que modificou totalmente o mundo do trabalho, porque pôs em concorrência os serviços, as empresas, as sucursais – e também os indivíduos. E se estiver associada quer a prémios ou promoções, quer a ameaças em relação à manutenção do emprego, isso gera o medo. E como as pessoas estão agora a competir entre elas, o êxito dos colegas constitui uma ameaça, altera profundamente as relações no trabalho: “O que quero é que os outros não consigam fazer bem o seu trabalho.”


    Muito rapidamente, as pessoas aprendem a sonegar informação, a fazer circular boatos e, aos poucos, todos os elos que existiam até aí – a atenção aos outros, a consideração, a ajuda mútua – acabam por ser destruídos. As pessoas já não se falam, já não olham umas para as outras. E quando uma delas é vítima de uma injustiça, quando é escolhida como alvo de um assédio, ninguém se mexe…


    Mas o assédio no trabalho é novo?

    Não, mas a diferença é que, antes, as pessoas não adoeciam. O que mudou não foi o assédio, o que mudou é que as solidariedades desapareceram. Quando alguém era assediado, beneficiava do olhar dos outros, da ajuda dos outros, ou simplesmente do testemunho dos outros. Agora estão sós perante o assediador – é isso que é particularmente difícil de suportar. O mais difícil em tudo isto não é o facto de ser assediado, mas o facto de viver uma traição – a traição dos outros. Descobrimos de repente que as pessoas com quem trabalhamos há anos são cobardes, que se recusam a testemunhar, que nos evitam, que não querem falar connosco. Aí é que se torna difícil sair do poço, sobretudo para os que gostam do seu trabalho, para os mais envolvidos profissionalmente. Muitas vezes, a empresa pediu-lhes sacrifícios importantes, em termos de sobrecarga de trabalho, de ritmo de trabalho, de objectivos a atingir. E até lhes pode ter pedido (o que é algo de relativamente novo) para fazerem coisas que vão contra a sua ética de trabalho, que moralmente desaprovam.


    Qual é o perfil das pessoas que são alvo de assédio?

    São justamente pessoas que acreditam no seu trabalho, que estão envolvidas e que, quando começam a ser censuradas de forma injusta, são muito vulneráveis. Por outro lado, são frequentemente pessoas muito honestas e algo ingénuas. Portanto, quando lhes pedem coisas que vão contra as regras da profissão, contra a lei e os regulamentos, contra o código do trabalho, recusam-se a fazê-las. Por exemplo, recusam-se a assinar um balanço contabilista manipulado. E em vez de ficarem caladas, dizem-no bem alto. Os colegas não dizem nada, já perceberam há muito tempo como as coisas funcionam na empresa, já há muito que desviaram o olhar. Toda a gente é cúmplice. Mas o tipo empenhado, honesto e algo ingénuo continua a falar. Não devia ter insistido. E como falou à frente de todos, torna-se um alvo. O chefe vai mostrar a todos quão impensável é dizer abertamente coisas que não devem aparecer nos relatórios de actividade.


    Um único caso de assédio tem um efeito extremamente potente sobre toda a comunidade de uma empresa. Uma mulher está a ser assediada e vai ser destruída, uma situação de uma total injustiça; ninguém se mexe, mas todos ficam ainda com mais medo do que antes. O medo instala-se. Com um único assédio, consegue-se dominar o colectivo de trabalho todo. Por isso, é importante, ao contrário do que se diz, que o assédio seja bem visível para todos. Há técnicas que são ensinadas, que fazem parte da formação em matéria de assédio, com psicólogos a fazer essa formação.


    Uma formação para o assédio?

    Exactamente. Há estágios para aprenderem essas técnicas. Posso contar, por exemplo, o caso de um estágio de formação em França em que, no início, cada um dos 15 participantes, todos eles quadros superiores, recebeu um gatinho. O estágio durou uma semana e, durante essa semana, cada participante tinha de tomar conta do seu gatinho. Como é óbvio, as pessoas afeiçoaram-se ao seu gato, cada um falava do seu gato durante as reuniões, etc.. E, no fim do estágio, o director do estágio deu a todos a ordem de… matar o seu gato.


    Está a descrever um cenário totalmente nazi...

    Só que aqui ninguém estava a apontar uma espingarda à cabeça de ninguém para o obrigar a matar o gato. Seja como for, um dos participantes, uma mulher, adoeceu. Teve uma descompensação aguda e eu tive de tratá-la – foi assim que soube do caso. Mas os outros 14 mataram os seus gatos. O estágio era para aprender a ser impiedoso, uma aprendizagem do assédio.

    Penso que há bastantes empresas que recorrem a este tipo de formação – muitas empresas cujos quadros, responsáveis de recursos humanos, etc., são ensinados a comportar-se dessa maneira.

    Voltando ao perfil do assediado, é perigoso acreditar realmente no seu trabalho?
    É. O que vemos é que, hoje em dia, envolver-se demasiado no seu trabalho representa um verdadeiro perigo. Mas, ao mesmo tempo, não pode haver inteligência no trabalho sem envolvimento pessoal – sem um envolvimento total.


    Isso gera, aliás, um dilema terrível, nomeadamente em relação aos nossos filhos. As pessoas suicidam-se no trabalho, portanto não podemos dizer aos nossos filhos, como os nossos pais nos disseram a nós, que é graças ao trabalho que nos podemos emancipar e realizar-nos pessoalmente. Hoje, vemo-nos obrigados a dizer aos nossos filhos que é preciso trabalhar, mas não muito. É uma mensagem totalmente contraditória.


    E os sindicatos?

    Penso que os sindicatos foram em parte destruídos pela evolução da organização do trabalho. Não se opuseram à introdução dos novos métodos de avaliação. Mesmo os trabalhadores sindicalizados viram-se presos numa dinâmica em que aceitaram compromissos com a direcção. Em França, a sindicalização diminuiu imenso – as pessoas já não acreditam nos sindicatos porque conhecem as suas práticas desleais.


    Como distinguir um suicídio ligado ao trabalho de um suicídio devido a outras causas?
    É uma pergunta à qual nem sempre é possível responder. Hoje em dia, não somos capazes de esclarecer todos os suicídios no trabalho. Mas há casos em que é indiscutível que o que está em causa é o trabalho. Quando as pessoas se matam no local de trabalho, não há dúvida de que o trabalho está em causa. Quando o suicídio acontece fora do local de trabalho e a pessoa deixa cartas, um diário, onde explica por que se suicida, também não há dúvidas – são documentos aterradores. Mas quando as pessoas se suicidam fora do local do trabalho e não deixam uma nota, é muito complicado fazer a distinção. Porém, às vezes é possível. Um caso recente – e uma das minhas vitórias pessoais – foi julgado antes do Natal, em Paris. Foi um processo bastante longo contra a Renault por causa do suicídio de vários engenheiros e cientistas altamente qualificados que trabalhavam na concepção dos veículos, num centro de pesquisas da empresa em Guyancourt, perto de Paris.

    Quando é que isso aconteceu?

    Em 2006-2007. Houve cinco suicídios consecutivos; quatro atiraram-se do topo de umas escadas interiores, do quinto andar, à frente dos colegas, num local com muita passagem à hora do almoço. Mas um deles – aliás de origem portuguesa – não se suicidou no local do trabalho. Era muitíssimo utilizado pela Renault nas discussões e negociações sobre novos modelos e produção de peças no Brasil. Foi utilizado, explorado de forma aterradora. Pediam-lhe constantemente para ir ao Brasil e o homem estava exausto por causa da diferença horária. Era uma pessoa totalmente dedicada, tinha mesmo feito coisas sem ninguém lhe pedir, como traduzir documentos técnicos para português, para tentar ganhar o mercado brasileiro para a empresa. A dada altura, teve uma depressão bastante grave e acabou por se suicidar.

    A viúva processou a Renault, que em Dezembro acabou por ser condenada por “falta imperdoável do empregador” [conceito do direito da segurança social em França], por não ter tomado as devidas precauções.


    Foi um acontecimento importante porque, pela primeira vez, uma grande multinacional foi condenada em virtude das suas práticas inadmissíveis. Os advogados do trabalho apoiaram-se muito nos resultados científicos do meu laboratório. O acórdão do tribunal tinha 25 páginas e as provas foram consideradas esmagadoras. Havia e-mails onde o engenheiro dizia que já não aguentava mais – e que a empresa fez desaparecer limpando o disco rígido do seu computador. Mas ele tinha cópias dos documentos no seu computador de casa. A argumentação foi imparável.


    Mesmo assim, as empresas continuam a dizer que os suicídios dos seus funcionários têm a ver com a vida privada e não com o trabalho.

    Toda a gente tem problemas pessoais. Portanto, quando alguém diz que uma pessoa se suicidou por razões pessoais, não está totalmente errado. Se procurarmos bem, vamos acabar por encontrar, na maioria dos casos, sinais precursores, sinais de fragilidade. Há quem já tenha estado doente, há quem tenha tido episódios depressivos no passado. É preciso fazer uma investigação muito aprofundada.


    Mas se a empresa pretender provar que a crise depressiva de uma pessoa se deve a problemas pessoais, vai ter de explicar por que é que, durante 10, 15, 20 anos, essa pessoa, apesar das suas fragilidades, funcionou bem no trabalho e não adoeceu.


    Mas como é que o trabalho pode conduzir ao suicídio? Só acontece a pessoas com determinada vulnerabilidade?

    Só muito recentemente é que percebi que uma pessoa podia ser levada ao suicídio sem que tivesse até ali apresentado qualquer sinal de vulnerabilidade psicopatológica. Fiquei extremamente surpreendido com um caso em especial, do qual não posso falar muito aqui, porque ainda não foi julgado, de uma mulher que se suicidou na sequência de um assédio no trabalho.

    A Polícia Judiciária [francesa] tinha interrogado os seus colegas de trabalho e, como a ordem vinha de um juiz, as pessoas falaram. Foram 40 depoimentos que descreviam a maneira como essa mulher tinha sido tratada pelo patrão (apenas uma contradiz as restantes 39). E o que emerge é que, devido ao assédio, ela caiu num estado psicopatológico muito parecido com um acesso de melancolia.


    Ora, o que mais me espantou, quando procurei sinais precursores, é que não encontrei absolutamente nada. E, pela primeira vez, comecei a pensar que, em certas situações, quando uma pessoa que não é melancólica é escolhida como alvo de assédio, é possível fabricar, desencadear, uma verdadeira depressão em tudo igual à melancolia. Quando essa pessoa se vai abaixo, tem uma depressão, autodesvaloriza-se, torna-se pessimista, pensa que não vale nada, que merece realmente morrer.


    Era uma mulher hiperbrilhante, muitíssimo apreciada, muito envolvida, imaginativa, produtiva. Tinha duas crianças óptimas e um marido excepcional. Falei com os seus amigos, o marido, a mãe. Não encontrei nenhum sinal precursor, nem sequer na sua infância.


    Aconteceu sem pré-aviso?

    Houve um período crítico que terá durado um mês. As pessoas à sua volta deram por isso. Viram que ela estava muito mal, o médico do trabalho foi avisado e obrigou-a a parar de trabalhar e pediu a alguém que a levasse para casa. Mas ela não queria parar, insistia que queria fazer o que tinha a fazer. A família também percebeu que algo estava a acontecer, ela consultou um psiquiatra, mas é impossível travar este tipo de descompensação. Foi para casa da mãe, mas quando pensaram que estava a melhorar um pouco, relaxaram a vigilância e ela atirou-se pela janela.

    Nos testemunhos recolhidos pela polícia, vê-se claramente que ninguém se atreveu a ajudá-la; todos dizem que tinham medo. Tinham medo do patrão, que era um tirano. Também assediava sexualmente as mulheres e esta mulher era muito bonita. Não consegui saber se tinha havido assédio sexual, mas várias pessoas evocam no seu depoimento que ela terá caído em desgraça porque se tinha recusado a fazer o que ele queria.

    O caso da France Télécom foi muito mediático, com 25 suicídios. O suicídio é mais frequente nas grandes empresas?

    Não. Nas grandes empresas pode ser mais visível, mas há também muitas pequenas empresas onde as coisas correm muito mal, onde os critérios são incrivelmente arbitrários e onde o assédio pode ser pior. Nas grandes empresas, subsiste por vezes uma presença sindical que faz com que os casos venham a público. Foi assim na France Télécom. Mas não acredito que a destruição actual do mundo do trabalho esteja a acontecer apenas nalgumas grandes multinacionais. E é importante salientar que também há multinacionais onde as coisas correm bem.

    Quantas pessoas se suicidam por ano, em França e noutros países?

    Não há estatísticas do suicídio no trabalho. Em França, foi constituída uma comissão ministerial onde pela primeira vez foi dito claramente que é urgente aplicar ferramentas que permitam analisar a relação entre suicídio e trabalho. Mas, por enquanto, isso não existe. Nem na Bélgica, nem no Canadá, nem nos Estados Unidos, não existe em sítio nenhum.

    Na Suécia, por exemplo, há provavelmente tantos suicídios no trabalho como em França. Mas não há debate. Em muitos países não há debate, porque não existe esse espaço clínico, essa nova medicina do trabalho que estamos a desenvolver em França. De facto, a França é dos sítios onde mais se fala do assunto. O debate francês interessa muita gente, mas também mete muito medo.

    Em França, foi feito um único inquérito, há quatro anos, pela Inspecção Médica do Trabalho, em três departamentos [divisões administrativas], passando pelos médicos do trabalho, e chegaram a um total de 50 suicídios em cinco anos. É provavelmente um valor subestimado, mas, extrapolando-o a todos os departamentos, dá entre 300 e 400 suicídios no trabalho por ano.

    Falou de “qualidade total”. O que é exactamente?

    É uma segunda medida que foi introduzida na sequência da avaliação individual. Acontece que, quando se faz a avaliação individual do desempenho, está-se a querer avaliar algo, o trabalho, que não é possível avaliar de forma quantitativa, objectiva, através de medições. Portanto, o que está a ser medido na avaliação não é o trabalho. No melhor dos casos, está-se a medir o resultado do trabalho. Mas isso não é a mesma coisa. Não existe uma relação de proporcionalidade entre o trabalho e o resultado do trabalho.

    É como se em vez de olhar para o conteúdo dos artigos de um jornalista, apenas se contasse o número de artigos que esse jornalista escreveu. Há quem escreva artigos todos os dias, mas enfim... é para contar que houve um acidente de viação ou outra coisa qualquer. Uma única entrevista, como esta por exemplo, demora muito mais tempo a escrever e, para fazer as coisas seriamente, vai implicar que o jornalista escreva entretanto menos artigos. Hoje em dia, julga-se os cientistas pelo número de artigos que publicam. Mas isso não reflecte o trabalho do cientista, que talvez esteja a fazer um trabalho difícil e não tenha publicado durante vários anos porque não conseguiu obter resultados.

    Passados uns tempos, surgem queixas a dizer que a qualidade [da produção ou do serviço] está a degradar-se. Então, para além das avaliações, os gestores começam a controlar a qualidade e declaram como objectivo a “qualidade total”. Não conhecem os ofícios, mas vão definir pontos de controlo da qualidade. É verdadeiramente alucinante.

    Para além de que declarar a qualidade total é catastrófico, justamente porque a qualidade total é um ideal. É importante ter o ideal da qualidade total, ter o ideal do “zero-defeitos”, do “zero-acidentes”, mas apenas como ideal.

    Em diabetologia, por exemplo, os gestores introduziram a obrigação de os médicos fazerem, para cada um dos seus doentes, ao longo de três meses, a média dos níveis de hemoglobina glicosilada A1c [ri-se], que é um indicador da concentração de açúcar no sangue. A seguir, comparam entre si os grupos de doentes de cada médico – é assim que controlam a qualidade dos cuidados médicos. [ri-se].

    Só que, na realidade, quando tratamos um doente, às vezes o tratamento não funciona e temos de perceber porquê. E finalmente, o doente acaba por nos confessar que não consegue respeitar o regime alimentar que lhe prescrevemos, porque inclui legumes e não féculas e que os legumes são mais caros... Tem três filhos e não tem dinheiro para legumes. E então, vamos ter de encontrar um compromisso.

    Da mesma forma, se um doente diabético é engenheiro e tem de viajar frequentemente para outros fusos horários, torna-se muito difícil controlar a sua glicemia com insulina. Mais uma vez, vai ser preciso encontrar um meio-termo. E isso é difícil.

    Mesmo uma central nuclear nunca funciona como previsto. Nunca. Por isso é que precisamos de “trabalho vivo”. A qualidade total é um contra-senso porque a realidade se encarrega de fazer com que as coisas não funcionem de forma ideal. Mas o gestor não quer ouvir falar disso.

    Ora, quando o ideal se transforma na condição para obter uma certificação, o que acontece é que se está a obrigar toda a gente a dissimular o que realmente se passa no trabalho. Deixa de ser possível falar do que não funciona, das dificuldades encontradas. Quando há um incidente numa central nuclear, o melhor é não dizer nada.

    Isso é extremamente grave.

    É. E em medicina passa-se a mesma coisa. Faz-se batota. Hoje, existem nos hospitais as chamadas “conferências de consenso” – acho que existem em toda a Europa – onde são feitas recomendações precisas para o tratamento de tal ou tal doença. E quando um médico recebe um doente, tem de teclar no computador para ver o que foi estabelecido pela conferência de consenso. O médico, que tem o doente à sua frente, pensa que essa não é a boa abordagem – porque sabe que o doente tem problemas com a mulher, com os filhos e não vai conseguir fazer o tratamento recomendado. Mas sabe também que se não fizer o que está lá escrito, e se por acaso as coisas derem para o torto, poderá haver um inquérito, a pedido da família ou de um gestor, e vão dizer que foi o médico que não fez o que devia. O problema da qualidade total é que obriga muitos de nós a viver essa experiência atroz que consiste em fazer o nosso trabalho de uma forma que nos envergonha.

    Há muitos suicídios entre os médicos?

    Cada vez mais. Há especialidades com mais suicídios do que outras – nomeadamente entre os médicos reanimadores. Em França é uma verdadeira hecatombe: é sabido que a profissão de anestesista-reanimador é das que têm maior taxa de suicídios. Nesta especialidade, os riscos de ser-se atacado em tribunal porque alguém morreu são tão elevados que os médicos se protegem seguindo as instruções. Mesmo que tenham a íntima convicção de que não era isso que deveriam fazer. Chegámos a esse ponto.

    É uma situação insuportável e há médicos que não aguentam ver um doente morrer porque tiveram medo de que isso se virasse contra eles. “Fiz o que estava escrito e o doente morreu. Matei o doente.” Há cada vez mais reanimadores que se confrontam com esta situação. Ainda por cima os cirurgiões atiram sempre as dificuldades que encontram nas operações para cima do reanimador. Sempre. Cada vez que acontece qualquer coisa, é porque o anestesista não adormeceu bem o doente, ou não o acordou correctamente, ou não soube restabelecer a pressão arterial. O cirurgião nunca admitirá que falhou nas suturas e que por isso o doente se esvaiu em sangue.

    Os médicos sempre foram considerados uma classe muito solidária…

    Foram. Já não são. Eu trabalhei anos nos hospitais, e adorava trabalhar lá, porque existia um espírito de equipa fantástico. Éramos felizes no nosso trabalho. Hoje, as pessoas não querem trabalhar nos hospitais, não querem fazer bancos, tentam safar-se. São todos contra todos. Bastaram uns anos para destruir a solidariedade no hospital. O que aconteceu é aterrador.

    O que é importante perceber é que a destruição dos elos sociais no trabalho pelos gestores nos fragiliza a todos perante a doença mental. E é por isso que as pessoas se suicidam. Não quer dizer que o sofrimento seja maior do que no passado; são as nossas defesas que deixaram de funcionar.

    Portanto, as ferramentas de gestão são na realidade ferramentas de repressão, de dominação pelo medo.

    Sim, o termo exacto é dominação; são técnicas de dominação.

    Então, é preciso acabar com essas práticas?

    Eu não diria que é preciso acabar com tudo. Acho que não devemos renunciar à avaliação, incluindo a individual. Mas é preciso renunciar a certas técnicas. Em particular, tudo o que é quantitativo e objectivo é falso e é preciso acabar com isso. Mas há avaliações que não são quantitativas e objectivas – a avaliação dos pares, da colectividade, a avaliação da beleza, da elegância de um trabalho, do facto de ser conforme às regras profissionais. Trata-se de avaliações assentes na qualidade e no desempenho do ofício. Mesmo a entrevista de avaliação pode ser interessante e as pessoas não são contra.

    Mas sobretudo, a avaliação não deve ser apenas individual. É extremamente importante começar a concentrar os esforços na avaliação do trabalho colectivo e nomeadamente da cooperação, do contributo de cada um. Mas como não sabemos analisar a cooperação, analisa-se somente o desempenho individual.

    O resultado é desastroso. Não é verdade que a qualidade da produção melhorou. A General Motors foi obrigada a alertar o mundo da má qualidade dos seus pneus; a Toyota teve de trocar um milhão de veículos por veículos novos ou reembolsar os clientes porque descobriu um defeito de fabrico. É essa a qualidade total japonesa?

    Hoje, nos hospitais em França, a qualidade do trabalho não aumentou – diminui. O desempenho supostamente melhorou, mas isso não é verdade, porque não se toma em conta o que está a acontecer do lado do trabalho colectivo.

    Temos de aprender a pensar o trabalho colectivo, de desenvolver métodos para o analisar, avaliar – para o cultivar. A riqueza do trabalho está aí, no trabalho colectivo como cooperação, como maneira de viver juntos. Se conseguirmos salvar isso no trabalho, ficamos com o melhor, aprendemos a respeitar os outros, a evitar a violência, aprendemos a falar, a defender o nosso ponto de vista e a ouvir o dos outros.

    Não haverá por detrás desta nova organização do trabalho objectivos de controlo das pessoas, de redução da liberdade individual, que extravasam o âmbito empresarial?

    É uma questão difícil. Acho que qualquer método de organização do trabalho é ao mesmo tempo um método de dominação. Não é possível dissociar as duas coisas. Há 40 anos que os sociólogos trabalham nisto. Todos os métodos de organização do trabalho visam uma divisão das tarefas, por razões técnicas, de racionalidade, de gestão. Mas não há nenhuma divisão técnica do trabalho que não venha acompanhada de um sistema de controlo, em virtude do qual as pessoas vão cumprir as ordens.

    Há tecnologias da dominação. O sistema de Taylor, ou taylorismo, é essencialmente um método de dominação e não um método de trabalho. O método de Ford é um método de trabalho.

    Contudo, não penso que a intenção do patronato (francês, em particular), nem dos homens de Estado seja instaurar o totalitarismo. Mas é indubitável que introduzem métodos de dominação, através da organização do trabalho que, de facto, destroem o mundo social.

    Qual é a diferença entre taylorismo e fordismo?

    Taylor inventou a divisão das tarefas entre as pessoas e a interposição, entre cada tarefa, de uma intervenção da direcção, através de um capataz. Há constantemente alguém a vigiar e a exigir obediência ao trabalhador. A palavra-chave é obediência. “Quando eu disser para parar de trabalhar e ir comer qualquer coisa, você vai obedecer. Se concordar, será pago mais 50 cêntimos pela sua obediência.” A única coisa que importa é a obediência. O objectivo é acabar com o ócio, os tempos mortos.

    Só muito mais tarde é que Ford introduziu uma nova técnica, a linha de montagem, que é uma aplicação do taylorismo. Na realidade, não é o progresso tecnológico que determina a transformação das relações sociais, mas a transformação das relações de dominação que abre o caminho a novas tecnologias.

    O toyotismo [ou Sistema Toyota de Produção] utiliza um outro método de dominação, o ohnismo [inventado por Taiichi Ohno (1912-1990)], diferente do taylorismo. É um método particular que extrai a inteligência das pessoas de uma forma muito mais subtil que o taylorismo, que apenas estipula que há pessoas que têm de obedecer e outras que mandam.

    No ohnismo, trata-se de fazer com que pessoas beneficiem a empresa oferecendo a sua inteligência e os conhecimentos adquiridos através da experiência. Para o fazer, nos anos 1980, introduziu-se algo de totalmente novo: os chamados “círculos de qualidade”.

    O sistema japonês foi realmente uma novidade em relação ao taylorismo, porque ensinou as pessoas a colaborar sem as obrigar a obedecer – dando-lhes prémios, pelo contrário. Quando uma sugestão de uma pessoa dá lucro, a empresa faz o cálculo do dinheiro que a empresa ganhou com a ideia e reverte para o trabalhador uma parte desse lucro. Trata-se de prémios substanciais.

    Mas há uma batota: os círculos de qualidade podiam durar horas, todos os dias, reunindo as pessoas a seguir ao trabalho para alimentar a caixinha das ideias. Todos se envolviam porque, por um lado, uma ideia que permitisse melhorar a produção valia-lhes chorudos prémios, mas também porque quem participava neles tinha um emprego vitalício garantido na empresa.

    O sistema foi exportado para a Europa, os EUA, etc. porque durante uns tempos, a qualidade melhorou de facto. Mas a dada altura, as pessoas no Japão trabalhavam tanto que começou a haver mortes por karōshi [literalmente “morte por excesso de trabalho”].

    O que é o karōshi?

    É uma morte súbita, geralmente por hemorragia cerebral (AVC), de pessoas novas que não apresentam qualquer factor de risco cardiovascular. Não são obesos, não sofrem de hipertensão, não têm níveis de colesterol elevados, não são diabéticos, não fumam, não são alcoólicos, não tem uma história familiar de AVC. Nada. A único factor que é possível detectar é o excesso de trabalho. Estas pessoas trabalham mais de 70 horas por semana, sem contar as horas passadas nos círculos de qualidade. Ou seja, são pessoas que estão literalmente sempre a trabalhar. Mal param de trabalhar, vão dormir. As descrições de colegas que foram fazer inquéritos no Japão são aterrorizadoras.

    O mundo do trabalho no Japão é alucinante. Há raparigas que entram nas fábricas de electrónica, por exemplo, e que são utilizadas entre os 18 e os 21 anos – porque aos 21 anos, já não conseguem aguentar as cadências de trabalho.

    As famílias confiam-nas às empresas por esses três anos, durante os quais elas se entregam de corpo e alma ao trabalho. E nalguns casos, a empresa compromete-se a casar a rapariga no fim dos três anos. É mesmo um sistema totalitário. E mais: essas jovens trabalham 12 a 14 horas por dia e depois vão para uns dormitórios onde há uma série de gavetões – cada um com cama e um colchão –, deitam-se na cama e fecha-se o gavetão. Dormem assim, empilhadas em gavetões. Três anos… em gavetões… é preciso ver para crer.

    Mas uma coisa destas não é aplicável na Europa

    Não, pelo menos em França nunca funcionaria. Ainda não chegámos lá, disso tenho a certeza.

    Mas acha que poderia acontecer?

    Sim, acho que poderíamos lá chegar. Tudo é possível. Mas ao contrário do que se diz, não há uma fatalidade, não é a mundialização que determina as coisas, não é a guerra económica. É perfeitamente possível, no contexto actual, trabalhar de outra maneira, e há empresas que o fazem, com uma verdadeira preocupação de preservar o “viver juntos”, para tentar encontrar alternativas à abordagem puramente de gestão. O que não impede que a tendência seja para a desestruturação um pouco por todo o lado. É difícil resistir-lhe.

    Uma empresa que defendesse os princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade conseguiria sobreviver no actual contexto de mercado?

    Hoje, estou em condições de responder pela afirmativa, porque tenho trabalhado com algumas empresas assim. Ao contrário do que se pensa, certas empresas e alguns patrões não participam do cinismo geral e pensam que a empresa não é só uma máquina de produzir e de ganhar dinheiro, mas também que há qualquer coisa de nobre na produção, que não pode ser posta de lado. Um exemplo fácil de perceber são os serviços públicos, cuja ética é permitir que os pobres sejam tão bem servidos como os ricos – que tenham aquecimento, telefone, electricidade. É possível, portanto, trabalhar no sentido da igualdade.

    Há também muita gente que acha que produz coisas boas – os aviões, por exemplo, são coisas belas, são um sucesso tecnológico, podem progredir no sentido da protecção do ambiente. O lucro não é a única preocupação destas pessoas.

    E, entre os empresários, há pessoas assim – não muitas, mas há. Pessoas muito instruídas que respeitam esse aspecto nobre. E, na sequência das histórias de suicídios, alguns desses empresários vieram ter comigo porque queriam repensar a avaliação do desempenho. Comecei a trabalhar com eles e está a dar resultados positivos.

    O que fizeram?

    Abandonaram a avaliação individual – aliás, esses patrões estavam totalmente fartos dela. Durante um encontro que tive com o presidente de uma das empresas, ele confessou-me, após um longo momento de reflexão, que o que mais odiava no seu trabalho era ter de fazer a avaliação dos seus subordinados e que essa era a altura mais infernal do ano. Surpreendente, não? E a razão que me deu foi que a avaliação individual não ajuda a resolver os problemas da empresa. Pelo contrário, agrava as coisas.

    Neste caso, trata-se de uma pequena empresa privada que se preocupa com a qualidade da sua produção e não apenas por razões monetárias, mas por questões de bem-estar e convivialidade do consumidor final. O resultado é que pensar em termos de convivialidade faz melhorar a qualidade da produção e fará com que a empresa seja escolhida pelos clientes face a outras do mesmo ramo.

    Para o conseguir, foi preciso que existisse cooperação dentro da empresa, sinergias entre as pessoas e que os pontos de vista contraditórios pudessem ser discutidos. E isso só é possível num ambiente de confiança mútua, de lealdade, onde ninguém tem medo de arriscar falar alto. Se conseguirmos mostrar cientificamente, numa ou duas empresas com grande visibilidade, que este tipo de organização do trabalho funciona, teremos dado um grande passo em frente.

    Versão integral da entrevista foi publicada no PÚBLICO

    http://www.publico.pt/Sociedade/um-suicidio-no-trabalho-e-uma-mensagem-brutal_1420732

    sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

    Entrevista com Henry Boisrolin, do Comité Democrático Haitiano Povo do Haiti resiste à ocupação

    Com o mais baixo rendimento per capita do mundo, o Haiti, invadido pelos EUA, é hoje um país ocupado sob comando militar do Brasil por cedência de Lula ao imperialismo norte-americano.
    Fora da agenda da central de desinformação mediática, o Haiti resiste, como se pode ver nesta entrevista com Henry Boirolin, do Comité Haitiano do Povo do Haiti.
    Carlos Aznárez* - 12.01.10

    Em entrevista ao Resumen Latinoamericano, o dirigente do Comité Democrático Haitiano, Henry Boisrolin, denuncia a ocupação militar que seu país sofre na actualidade, situação da qual são cúmplices vários países da América Latina.

    Carlos Aznarez (CA): - Qual é a situação do Haiti na actualidade?
    Henry Boisrolin (HB): - O Haiti se encontra sob ocupação, mas a grande imprensa internacional apresenta este fato como se fosse “ajuda humanitária”. Inclusive, o nome da missão da ONU diz que é “para a estabilização do Haiti”. Há uma combinação de 40 países integrantes desta Missão e desgraçadamente temos tropas latino-americanas dentro do país. Como se sabe, o comando militar encontra-se sob a liderança do Brasil. Isto é algo que nós rejeitamos, porque entendemos que é uma violação à nossa soberania e dignidade como povo.

    A resistência provém de distintos sectores da população, mas ultimamente são estudantes universitários, aos quais se somam alguns do ensino médio, que ganharam as ruas para exigir a retirada das tropas e a promulgação de uma lei sobre o salário mínimo votada pelo Parlamento. O que ocorre é que o governo de Preval não o aceita, sob o pretexto de que se o Haiti já tem 70% de sua população activa desempregada, promulgar uma lei que signifique aumentar de 1,70 dólares para 4 ou 5 dólares o salário mínimo por dia, “vai provocar uma avalanche de demissões e agravará ainda mais a situação dos trabalhadores”. Para os estudantes, esta resposta é uma nova falácia do governo, e propuseram acções de resistência, ocupando várias Faculdades.

    CA: - Como reagiu o governo de Preval?
    HB: - Reprimindo os estudantes. Houve várias mortes, dezenas de detidos, professores perseguidos, lançaram bombas de gás lacrimogéneo e balas de chumbo nos manifestantes. A Missão das Nações Unidas foi acompanhar a polícia haitiana em toda esta tarefa repressiva. Isso é o que queremos denunciar e ao mesmo tempo pedir solidariedade para que os governos latino-americanos entendam que essa não é a via, que o Haiti não precisa de tropas militares. O que nós precisamos é o tipo de ajuda que dão Cuba e Venezuela, esse é o modelo válido de apoio, de humanidade, de respeito à nossa independência e soberania.

    CA: - Vamos nos deter neste último tema. As tropas das Nações Unidas dizem que eles vão para cumprir tarefas humanitárias. Pelo menos é isso que dizem as chancelarias dos países que estão implicados nesta manobra, como a Argentina, Uruguai, Brasil e outros. Inclusive, alguns partidos progressistas se encarregaram de explicar que “era melhor que viessem as tropas latino-americanas do que o Haiti permanecer invadido pelos Estados Unidos”. O que opina dessas colocações?
    HB: - Antes de mais nada, é preciso desmentir algo: não houve nenhuma autoridade legítima do meu país que tenha pedido tal intervenção, isso é uma mentira. Em 2004, ano do Bicentenário de nossa independência, havia um presidente legítimo que era Jean-Bertrand Aristide. Havia distúrbios no país, e com essa desculpa veio um comando militar norte-americano que o sequestrou. Puseram-no num avião e o mandaram ao exílio na República Centro-Africana. Agora esta na África do Sul. Algo muito parecido ao que fizeram agora com o presidente Zelaya. Não são casos isolados e deixam precedentes que ameaçam a segurança e a democracia no resto dos países latino-americanos.

    Assim é a história, ninguém pediu tal intervenção. Eles impuseram um governo de fato que organizou as eleições e aí Preval ganhou, legitimando o golpe, igual à tentativa actual em Honduras. Sim, é verdade que o presidente Preval, que ganhou as eleições, solicitou a manutenção da Missão da Minustah, mas originalmente não houve nenhuma autoridade haitiana que tenha pedido isso. Haveria que ir ao Haiti e andar pelas ruas de seus bairros mais populares para compreender a rejeição do povo à presença das tropas de ocupação.

    CA: - Como agem essas tropas invasoras?
    HB: - O accionar das tropas das nações Unidas é algo que indigna qualquer ser humano com um pouquinho de sensibilidade. Em um país onde 70% de sua população activa não tem trabalho, onde temos uma taxa de mortalidade infantil superior a 80 por mil e uma taxa de analfabetismo no campo, que supera 70% e nas cidades 50%, ou onde se tem uma expectativa de vida que não supera os 50 anos. Estamos falando de um país com suas estruturas económicas destruídas, onde 60% do orçamento haitiano provém da ajuda internacional e das remessas que enviam os haitianos que trabalham fora. Por tudo isso, dizer que tem que ir com tanques, aviões e helicópteros para resolver isso, é totalmente falso e cruel.

    O que fizeram estes “salvadores”? Estupraram as meninas e mulheres haitianas, bateram e torturaram nossos jovens. Não somos nós que dizemos isso, foi uma investigação da própria ONU que confirmou esses fatos, e a única coisa que foi feita, foi pegar alguns soldados e mandá-los para casa, porque segundo o Convénio da Resolução 545, que permitiu a entrada das tropas no dia 1º de Junho de 2004, o Haiti não tem direito de julgar nenhum militar estrangeiro, por mais que tenha cometido crimes de lesa-humanidade. Mais submissão que isso não pode existir.

    CA: - Ou seja, violações de direitos humanos realizados dentro de uma “legalidade” imposta, que garante mais impunidade...
    HB: - Exacto. Mas há outro tema que quero abordar e que às vezes fica postergado porque nos aprofundamos mais em estudar a realidade política ou económica de um país. Refiro-me à dignidade humana, o valor da relação e os sentimentos humanos, o contacto entre os povos. Ou seja, uma história em comum. O Haiti, depois de se tornar independente, foi muito solidário com muitos povos latino-americanos. Ajudou Miranda, Bolívar, em duas oportunidades, com fuzis, com dinheiro e outras coisas, mas fundamentalmente com voluntários. Centenas de haitianos morreram pela independência da Venezuela e de outros países. Por isso dizemos que receber este tratamento actual é uma afronta à história. Nosso povo não cometeu nenhum crime, salvo pedir maior justiça. E sofremos um comportamento mercenário, porque muitos destes invasores vêm pelo dinheiro pago, ganham milhares de dólares sem gastar absolutamente nada. Em seis ou sete meses que estão no Haiti, voltam a seus respectivos países com uma boa quantidade de dinheiro em mãos, coisa que não podem ter em seus lugares de origem.

    Então, aproveitando uma situação de debilidade, de falta de capacidade do movimento popular haitiano para reverter esta situação, vêm e te avassalam.

    Tem que ver, por exemplo, em Porto Príncipe, em alguns dos bairros mais calmos, como durante a noite (porque não há praticamente vida noturna no Haiti, não há luz, nem serviços que se possam encontrar em outros países) se vê um contínuo desfile de carros das nações Unidas, em frente aos melhores bares e restaurantes, gastando muitos dólares, e lá fora o povo dormindo nas ruas.

    CA: - É realmente ofensivo e indignante...
    HB: - Isto pede uma reflexão, porque escutamos alguns governos, quando passam furações ou sucedem outros acontecimentos climáticos, dizer que as tropas estão ali precisamente para nos ajudar em maus momentos. Mas isso não é o determinante, nem nada disso. A ocupação do Haiti é um novo esquema para dobrar a rebelião popular num país onde as classes dominantes não têm possibilidade alguma de ganhar as eleições de forma limpa. Então, é preciso impor, pela força das armas uma estratégia de dominação. Esse é o verdadeiro papel dos ocupantes. E para os que dizem que “melhor essas tropas do que as dos Estados Unidos”, nós dizemos que é justamente o contrário. De outra forma teríamos tido o inimigo de frente, de maneira mais clara. Em vez disso, ver irmãos latino-americanos enviados por governos que teriam que apresentar outro tipo de comportamento diante do drama haitiano, é muito duro. Eu estive em bairros populares muito castigados por estas tropas e escutei o que diz o coração dessa gente. A indignação com que contam como bombardeiam durante a madrugada para capturar supostos bandidos destes bairros. Ou quando soldados entram aos montes e chutam as portas, arrastando para fora aterrorizados moradores. Por isso, não há lugar para mais mentiras: trata-se de uma ocupação clara da República do Haiti, e à medida que esta situação segue, haverá mais resistência.


    * Carlos Aznarez, jornalista argentino é director de Resumen Latinoamericano
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